O que a imprensa perdeu quando virou algoritmo
O futuro do Jornalismo não está em vencer o algoritmo, mas em relembrar por que começamos a contar histórias.
Nos últimos quinze anos, vimos o Jornalismo passar por uma das maiores mutações da sua história: deixou de ser um ofício de mediação editorial para se submeter à lógica matemática dos algoritmos. E, ao fazer isso, trocou a bússola ética pelo GPS do engajamento.
Essa transformação, que foi vendida como "inovação digital", não é neutra — e não é gratuita. A imprensa, ao se moldar às engrenagens invisíveis do Google, do Facebook, do Instagram, do X (ex-Twitter) e, mais recentemente, do TikTok, perdeu mais do que apenas autonomia. Perdeu profundidade. Perdeu tempo. E, talvez, tenha perdido também sua razão de existir.
Da curadoria ao clique
Durante décadas, o Jornalismo se orgulhou de ser o guardião da agenda pública. As manchetes do jornal impresso, a escalada do telejornal, a ordem dos blocos e das colunas — tudo era pensado por editores humanos, com base em critérios editoriais, jornalísticos e, sim, políticos (seja em qual sentido for).
Hoje, a linha editorial de muitas redações é definida por uma aba chamada Google Trends.
Se a reportagem não performa nas métricas do Analytics ou não gera tráfego no Twitter, ela é engavetada, ignorada ou editada para parecer algo que não é. A urgência do clique substituiu o interesse público. E a pergunta deixou de ser “isso é relevante?” para virar “isso viraliza?”.
O algoritmo não entende contexto
O algoritmo não tem consciência, não mede impacto social e não pondera complexidade. Ele apenas reage a padrões: tempo de permanência, cliques, curtidas, comentários e compartilhamentos.
E o que mais gera essas interações? Emoção, polarização ou choque? O Jornalismo, que antes buscava explicar, passou a buscar provocar.
O resultado é o que temos hoje: manchetes ansiosas, chamadas sensacionalistas, editoriais anêmicos e uma cobertura que frequentemente prioriza a histeria ao invés da análise.
O custo do imediatismo
Ao virar refém do algoritmo, a imprensa perdeu tempo — no pior sentido da palavra. Passou a correr atrás do próprio rabo, publicando primeiro e apurando depois. Na ânsia por ganhar minutos em relação à concorrência, perdeu o valor da precisão, da ponderação, da dúvida.
O espaço para o silêncio investigativo — aquele que amadurece a pauta antes da publicação — virou luxo.
E quando tudo vira urgente, nada é importante.
A crise de confiança e a desinformação
Há também um impacto invisível, mas profundo: o da erosão da confiança.
Quando o público percebe que os títulos são caça-cliques, que o conteúdo é reciclado, que a mesma pauta é empacotada para viralizar, e que os veículos parecem se comportar como influencers desesperados por curtidas — a credibilidade vai embora.
Nesse vácuo, quem cresce? Os desinformadores profissionais, os produtores de conteúdo opinativo sem responsabilidade factual e as figuras que misturam opinião com fake news e vendem "verdades alternativas" para públicos órfãos de confiança.
A imprensa como criadora de valor — não de tráfego
É possível virar esse jogo? Talvez. Mas, é preciso coragem para remar contra a corrente.
Alguns veículos independentes já perceberam que o modelo algorítmico é uma armadilha de curto prazo. Que a sustentabilidade do Jornalismo está em criar valor, e não apenas volume.
Valor se constrói com profundidade, com regularidade, com coerência editorial. Com a capacidade de surpreender sem ser histérico, de informar sem manipular e de ensinar sem doutrinar.
E, sobretudo, com gente decidindo o que vale ser publicado — não robôs.
O papel do jornalista nesse cenário
Como jornalistas, precisamos retomar a autoria sobre nossa própria prática. Entender o algoritmo, sim — mas, não, nos submetermos a ele. Usá-lo como ferramenta, não como mestre.
Isso exige novas habilidades: curadoria inteligente, escrita que conecta, visão estratégica sobre formatos, mas, também, um retorno à base: apuração rigorosa, ética editorial, empatia com o leitor.
O futuro do Jornalismo não está em vencer o algoritmo, mas em relembrar por que começamos a contar histórias.
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